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Mulher servidora

Nossa-Senhora-das-DoresIniciando a quinta semana da caminhada quaresmal, somos chamados a olhar especialmente para Maria, a mulher que o Pai escolheu para ser a mãe do Salvador. Como tal, ela não só gera o Filho, mas O acompanha em toda a Sua trajetória vital, assumindo com Ele os momentos de alegria, mas, sobretudo, os momentos de dor, como fazem as autênticas mães com seus filhos, num exemplo eloquente de serviço desinteressado.

Nesta que é chamada Semana das Dores, temos oportunidade de olhar para a Virgem de Nazaré, como mulher forte, fiel e oferente, na qual o ideal de servir não é apenas um ato da generosidade humana, mas um verdadeiro compromisso que nasce da fé. De fato, a fé em Maria se traduz em servir, sabendo que assim pode-se cumprir a vontade do Pai. Disse ela ao Anjo quando foi anunciada: “Eis aqui a serva do Senhor, cumpra-se em mim a Tua palavra” (Lc 1, 38).

Falar de Maria como servidora nos remete também ao Dia da Mulher, celebrado no dia 8 de março, propondo reflexão sobre o valor e a dignidade do elemento feminino, seu papel inalienável na vida social, comunitária e familiar. Em Maria encontra-se o olhar de Deus sobre a presença da mulher, criatura Sua, no mistério da salvação, obedecendo à mística do serviço, da forma proposta por Cristo.

Na verdade, Jesus indica o serviço como condição para se tornar parte no projeto de Deus, que quer o mundo como uma família bem constituída, onde reine a paz, a felicidade e a coragem para enfrentar serenamente os problemas e as dores inevitáveis nas condições desta vida terrena, na estrada que leva ao Reino Definitivo, onde tudo é perfeito. Por este ideal de família é que Deus, ao enviar Seu Filho ao mundo, não quis fazê-lo sem passar pela realidade doméstica, escolhendo uma mulher como porta principal de sua vinda, ao lado de um homem, José, que lhe garante a condição de esposa e a protege na condição de mãe, pois, sendo ele, homem justo, a livra de perigos impostos por interpretações legalistas numa sociedade com marcas machistas. Ambos estão imersos na fé inarredável de um Deus que, em lugar de ser servido, quer pôr-se a servir à pessoa humana, usando de sua infinita misericórdia: “Eu vim para servir e não para ser servido” (Mc 10,45).

Em Maria, tudo se relaciona a Cristo, centro de sua vida e de sua missão. Portanto, antes mesmo que seu Filho pregasse aos discípulos o serviço como expressão concreta do amor a Deus e ao próximo, Nossa Senhora, no início de sua gravidez, sai em longínqua viagem de Nazaré a uma cidade de Judá para servir à sua prima Isabel que na velhice concebera um filho e com ela permanece três meses servindo-a (Cf. Lc 1, 39-56). Antes que Jesus se inclinasse diante de cada apóstolo para lavar-lhes os pés, Maria, numa relação delicada do amor materno, já lavara os pés de seu Filho quando criança, dele cuidando afetuosamente para servir ao plano salvífico de Deus em favor da humanidade.

Na ordem humana, podemos afirmar que foi no lar de Nazaré que Jesus vivenciou a lição do serviço, com José e Maria, servidores do Pai e o Espírito Santo. Na Exortação Apostólica Marialis Cultus (02.02.1974), o Papa Paulo VI já recordava esse espírito de serviço presente na vida de Nossa Senhora, sobretudo em relação à Igreja, família de Deus, onde ela é “como em qualquer lar doméstico, a figura de uma mulher, que, escondidamente e em espírito de serviço, vela pelo bem e benignamente protege, na sua caminhada em direção à Pátria, até que chegue o dia glorioso do Senhor”.

Entre Maria e Jesus há uma terna sintonia que vai se verificar de forma plena no mistério da paixão, morte e ressurreição do Senhor. Afirma Paulo VI no citado Documento: “Esta união da Mãe com o Filho na obra da Redenção (LG 57) alcança o ponto culminante no Calvário, onde Cristo se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha (Hb 9,14) e onde Maria esteve de pé, junto à cruz (cf. Jo 19,25), sofrendo profundamente com seu Unigênito e associando-se com ânimo maternal ao seu sacrifício, consentindo amorosamente na imolação da vítima que ela havia gerado“ (LG 58), e oferecendo-a também ela ao Eterno Pai.

A fim de se celebrar bem a Semana Maior que culmina com a ressurreição do Senhor, a Páscoa, certamente a palavra de Santo Ambrósio, em sua Exposição do evangelho segundo Lucas, nos ajudará: “Que em cada um de vós haja a alma de Maria para bendizer o Senhor; e em cada um de vós esteja o seu espírito, para exultar em Deus”.


Dom Gil Antônio Moreira
Arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora

A luz de Deus na escuridão da pandemia

Jesus-e-NicodemosA celebração do Domingo da Alegria, em latim, Domingo Laetare, marca exatamente o centro da Quaresma; já caminhamos 20 dias e daqui a 20 dias estaremos celebrando a Páscoa. Nosso coração, marcado pela penumbra da penitência, do jejum, da abstinência, se volta agora para frente e já vislumbra a festa da Páscoa com suas claridades animadoras.

Mas como podemos celebrar alegrias na situação em que nos encontramos no Brasil e no mundo, com esta terrível pandemia que persiste e desafia as nossas esperanças? Chegou a vacina tão esperada, mas ao mesmo tempo surgiram novas variantes, com cepas que parecem mais fortes que a primeira, com contágio mais rápido, com poder letal mais forte, atingindo jovens e até crianças?! Como não ter receio de que outras variações possam vir e nos causar mais perigo ainda?! Já não temos mais certeza de nada, nem de quando a pandemia vai acabar de todo e quanto tempo ainda durará! Até quando, meu Deus, irá esta situação de incertezas e perigos?

Vem em nosso socorro o longo e profundo diálogo de Jesus com Nicodemos, registrado no capítulo 3 de São João. Nicodemos era um homem importante, chefe dos judeus, sábio e inteligente, que procurou Jesus à noite para uma conversa. Suas palavras são sinceras e ele não tem nenhum interesse de colocar Jesus em dificuldade, como aconteceu em outras vezes, em que os fariseus queriam armar ciladas para Ele. Nicodemos dialoga com o Senhor expondo sua sincera admiração pela pregação e pelos Seus atos e ouve um dos mais belos discursos em estilo coloquial. Jesus lhe havia dito: é preciso nascer de novo […], nascer do Espírito, nascer do alto (cf. Jo 3,7-8).

Nicodemos foi entendendo o que Jesus dizia e aceitando o que lhe ia caindo no coração. Jesus lhe fala da luz que deve ser recebida. Era noite e o Senhor lhe anuncia o dia. A luz veio ao mundo, mas as pessoas amaram mais as trevas que a luz, porque suas obras eram más… (cf. Jo 3,19). Jesus já lhe havia anunciado antes que Deus amou tanto o mundo que enviou seu Filho único, para que não pereça todo o que nele crê, mas tenha a vida eterna. Deus enviou seu filho ao mundo não para condenar o mundo, mas para que mundo seja salvo por ele (Jo 3,16-17).

A palavra mundo, aqui, pode ser traduzida como humanidade, comunidade das pessoas humanas. Jesus deu, assim, a certeza do amor de Deus que nunca desiste de nós, mas nos quer salvar a todo custo. Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva (Ezequiel 18,23). Mas a salvação precisa ser aceita, abraçada, acolhida. Por isso Jesus diz a Nicodemos: Quem não crer já está condenado… (cf. Jo 3,18).

No mesmo sentido, São Paulo escreve aos efésios recordando que Deus é rico em misericórdia (Ef 2, 4). Para aqueles que se abrem a Cristo, não recusam a sua luz, a graça de Deus é garantida. Somos, na verdade, salvos de graça, pois Deus nos ama e espera de nós que nos abramos à sua misericórdia.

Neste prisma, o Domingo da Alegria nos enche de esperança. É tempo de revisão de costumes, tempo de conversão sincera, tempo de nos aproximarmos de Cristo como luz que pode iluminar-nos nestes tempos de escuridão em que a pandemia vai nos imergindo e desafiando. Como afirmou Jesus a Nicodemos, a serpente levantada no deserto era capaz de curar os que para ela olhavam, ou seja, aqueles que acreditavam no sinal de Deus. Também nós temos para quem olhar.

Contemplemos o crucifixo, a Jesus pregado na cruz, com olhar de confiança, pois Deus também olha por nós. Seu olhar é de amor, é de misericórdia, é de bondade. Isso nos enche de uma alegria interior que ninguém pode tirar e não há pandemia, nem vírus capaz de destruir.


Dom Gil Antônio Moreira
Arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora

Purificando a nossa fé

DSC 0176Na caminhada quaresmal, a Igreja apresenta também o intrigante episódio da expulsão dos vendilhões do templo, praticado com veemência por Jesus. Os quatro evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João) apresentam Jesus indo a Jerusalém para celebrar a Páscoa. Porém, ao aproximar-Se do Templo, encontra no pátio dos gentios uma cena contraditória à fé e ao espírito de oração: um comércio desrespeitoso e impróprio para o local. Com seu gesto forte, purifica o Templo, expulsando dali vendilhões e cambistas.

Mas por que Jesus se irrita? A única resposta a essa pergunta é por não aceitar que usassem local sagrado, destinado ao culto, para fazerem tal atividade. O local onde os vendilhões estavam era, na verdade, não dentro do templo, mas numa praça interna onde os gentios podiam rezar. Gentios eram aquelas pessoas que não pertenciam à raça judaica, mas provenientes de outras etnias que passavam a crer em Deus único e verdadeiro, anunciado pelos judeus. Os gentios, por lei, não podiam entrar no recinto da celebração judaica, mas podiam rezar no referido pátio e ali escutar a Palavra de Deus lida no interior do templo. Era, portanto, um lugar de acolhimento de estrangeiros e de pessoas de várias raças e nações. Esse ambiente de acolhimento agradava a Jesus que veio para todos e não para alguns. Ele mesmo dizia, não vim para salvar os justos, mas os pecadores (cf. Mt 9,13).

Voltando ao ambiente contraditório onde se encontrava o desajustado comércio, vejamos como seria difícil rezar num local de barulho e até de gritaria de comerciantes oferecendo suas mercadorias, de animais que berram e de movimentação mercantilista o dia inteiro?! Afinal, aquele ambiente era muito mais a imagem da ganância dos comerciantes, que punham seus lucros acima do valor espiritual, da oração e escuta da Palavra de Deus. Por isso, Jesus os expulsa com esta severa expressão: Não façais da casa de meu Pai um comércio (cf. Jo 2,16). A atitude de Jesus é de purificação do Templo e mais ainda de purificação da fé. Os três evangelistas sinóticos usam expressão ainda mais contundente: Tirai isso daqui. Está escrito: minha casa é casa de oração e vós fizestes dela um covil de ladrões. (cf. Mt 21,13; Mc 11,17; Lc 19,46).

Jesus foi instado pelos chefes do templo, sobre com que autoridade fazia aquelas coisas. Certamente os chefes se irritaram com o gesto de Cristo, pois eles mesmos autorizavam os comerciantes a porem ali as suas bancas. Mas Jesus leva-os a refletir sobre um outro aspecto mais profundo, para responder à pergunta “Com que autoridade faz estas coisas”. Destruí este templo e eu o reedificarei em três dias. Retrucaram: “Como podes construir outro templo como esse que foi construído em 46 anos?” (cf. Jo 2, 18-20). Ele falava do templo de Seu corpo que iria ser maltratado, agredido, destruído e morto, mas ressuscitaria ao terceiro dia.

Lembrava, como falou à Samaritana, que: Chegará o tempo e já chegou em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade (Jo 4, 24). Jesus chama atenção para Si mesmo como templo de Deus. Estar em Cristo é estar na comunhão com Deus. Mas também nós, dirá São Paulo, somos templos do Espírito Santo (I Cor 6, 19). Se não entendermos isso, nossos lugares de culto também perderão seu sentido.

Entre as leituras bíblicas é apresentado também o capítulo 20 do Livro do Êxodo, que registra o decálogo dado por Deus a Moisés no Monte Sinai. São os dez mandamentos que nos ensinam a colocar Deus em primeiro lugar, amar o próximo, respeitar a família e à propriedade alheia, vivendo em harmonia e honestidade com todos, buscando a via da santidade. Também encontramos textos das cartas de São Paulo, como a 1ª Carta aos coríntios, em que o apóstolo dos gentios diz “nós proclamamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos, mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus, sabedoria de Deus” (cf. I Cor 1,23-24). Vemos aí, outra vez, a presença de judeus e de gentios tratados no mesmo nível, indicando que a salvação que Cristo veio trazer é para todos e não para uma raça escolhida.

Eis aí o sentido quaresmal destes textos: somos chamados a purificar a nossa fé e nosso relacionamento com o próximo, num ideal de unidade como o Senhor desejou e rezou: Que todos sejam um como eu e tu somos um (Jo 17,21). A quaresma é oportunidade de valorizar as coisas espirituais acima das coisas materiais, a compreender que Cristo é nosso Salvador, nos purifica, nos santifica com seu sangue derramado na cruz e nos liberta do mal, do pecado e da morte, ressuscitando ao terceiro dia. Pela sua ressurreição também nós ressuscitaremos num processo de metamorfose espiritual, para viver eternamente na realidade definitiva do céu.


Dom Gil Antônio Moreira
Arcebispo Metropolitano de Juiz de Fora

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